Leão (Parte 1)
Por mais um dia Henry precisava
entrar naquele lugar infernal dedicado a punir aqueles que desviavam da conduta
esperada e imposta pelos livros mor da sociedade. Era assim que ele via o local.
Na teoria, a função das grades era isolar e ressocializar, mas Henry, psicólogo
formado com anos de carreira na área criminal, sabia que não existe
ressocialização de humano tratado feito bicho. “Gente tratada como bicho,
aprende a ser bicho”, dizia ele. Não que a opinião dele importasse ou que ele
fizesse questão de ser ouvido. No fundo, ele já tinha desistido de mudar o
mundo. Contentava-se com o salário e o sexo descompromissado, e muitas vezes
pago, nos finais de semana.
Independentemente do que pensava,
porém, o protagonista de nossa história precisava cumprir seu papel na
narrativa. Então, após longo e exausto suspiro, o inferno ele adentrava. Lá,
três coisas existiam em amplo estoque: diabos sofridos, barras de metal e gente
que se dizia inocente. Ao longo dos meses que teve que visitar em frequência
próxima da diária aquele covil da desesperança, Henry decorou a face de quase
todos ali. Alguns rostos, inclusive, já tinham partido daquele inferno para o
bíblico porque, veja bem, dizer que a vida nestes lugares é difícil seria um
eufemismo homérico.
Com o tempo, Henry foi decorando
involuntariamente a rotina local. Já sabia quem era, de fato, perigoso por lá,
e quem era só mais uma vítima. Vez ou outra batia nele sentimento de compaixão
e vontade de ajudar aqueles que estão lá por infortúnio sofrido e não causado,
mas tal sentimento era feito brisa de asfalto no auge do verão, desconfortável
e ligeiro. O psicólogo levava as faces de dor para casa, mas, com determinação
titânica e whisky barato, conseguia afastá-las para o vazio do fundo da mente.
“Foco, Henry”, repetia o coitado na frente do espelho junto de frases
motivacionais baratas. Não raramente era pego de supetão, como uma bofetada na
face, pela lembrança de seu professor do primeiro período da faculdade dizendo:
“àqueles que entraram aqui em busca de conserto, recomendo a porta da rua. Aqui
vocês vão aprender a consertar os outros, e frequentemente vão falhar”.
O motivo de Henry ter que
frequentar lugar que fazia tão mal a seu estado mental se chamava Chiquinho
Leão. Chiquinho era homem franzino de cabelo encaracolado bem curto e traços
finos, quase femininos. Ele usava óculos fundo de garrafa e roupas largas. Quem
o visse na rua jamais imaginaria se tratar de criminoso perigosíssimo, digno de
segurança máxima e vigilância 24 horas. Até mesmo Henry, que fora treinado para
perfilar pessoas, teve dificuldades no começo para associar Chiquinho Leão, o
assassino em série, com Chiquinho Leão, o homem de ombro murcho e voz
adocicada.
Alguns anos antes, Henry havia
ganhado notoriedade e vendido livros aos baldes após resolver o curioso caso da
morte por envenenamento de 47 pessoas numa festa. Na ocasião, Henry conseguiu
uma confissão do então garçom. A mando dos donos da festa, o garçom, Dario,
envenenara as bebidas. No entanto, sem ter como provar que havia sido um
suicídio coletivo, o ex-garçom foi condenado pelo homicídio de todas as 47
pessoas. Henry se beneficiou da situação, aquilo alavancou sua carreira e o
ajudou até a alçar voos no meio literário com o título “Conhecendo o assassino”,
livro que rapidamente se tornou literatura recomendada a todos que desejavam
aprender a entrar na mente de um assassino.
Já a mente de Henry entrou numa
espiral de autodestruição e culpa ao descobrir a condenação do antigo paciente.
No meio acadêmico, Henry era tido como gênio. Em casa, na frente do espelho,
Henry se via como um idiota.
Ao receber a ligação falando do
caso de Chiquinho, Henry viu uma oportunidade de se redimir. Aos seus pares,
amigos e familiares, Henry dizia que era apenas mais um trabalho com a polícia,
mais um caso, mais um livro. No seu âmago, Henry se agarrava desesperadamente à
chance inexistente de consertar erros do passado. E foi assim, nesse misto de
remorso com ganância, que os mundos de Henry e Francisco, vulgo Chiquinho Leão,
colidiram-se.
Henry era filho de um americano
com uma brasileira. Teve um lar estável e estudou nos melhores colégios. Alguns
meses depois de completar 18 anos, Henry perdeu o pai para a leucemia. Foi uma
dor horrível que Henry custou a superar, mas foi um dos dois fatores que o
motivaram a cursar psicologia. Com a morte do pai, veio a queda no padrão de
vida, em muito causado pelo alcoolismo da mãe — o segundo fator que o motivou a
cursar psicologia. A vida de Henry tinha tudo para degringolar após a morte da
figura paterna, porém o universo sorriu para ele. A mãe se recuperou do
alcoolismo, Henry conseguiu se formar e se tornou um bom profissional. Após
alguns poucos anos de prática, decidiu se especializar na área criminal. Tinha
o sonho de ajudar inocentes a provarem a ausência de culpa... triste ironia.
Francisco era filho de uma passadeira. Nunca
conheceu o pai. Sua mãe, Ruth, sempre extremamente ocupada com botar comida na
mesa de casa, não tinha tempo para dar amor e afeto ao filho. Além disso, Ruth
também nem sabia muito bem o que era amor e afeto, fora criada na base do cinto
e assim também criou Francisco. Aos 12, cansado de apanhar e ver a mãe apanhar
do padrasto, Francisco decidiu pôr fim àquela fagulha com um breve deslizar de
peixeira afiada na goela do cristão adormecido. Denunciado pela própria mãe
apavorada, Francisco foi mandado para um centro de reabilitação de menores. Lá
a única reabilitação que Francisco teve foi morrer e virar Chiquinho. Aos 16,
depois de se envolver numa disputa interna de poder entre gangues de menores,
Chiquinho matou dois com as próprias mãos, sem o auxílio de qualquer artefato,
apenas falanges e tendões. Pouco tempo depois, fugiu do centro de reabilitação.
Os relatos dos funcionários do local eram variados. Uns diziam que Chiquinho
era um doce de pessoa, os outros meninos é que implicavam com ele. Outros
diziam que Chiquinho era ardiloso e de coração ruim. Fato é que, pouco tempo
depois de fugir, antes mesmo da maioridade, Chiquinho entrou para o tráfico.
Foi nessa época que ele tatuou um leão no peito e passou a exigir que o
chamassem de Chiquinho Leão. Depois, vendo que ajudar no torpor de jovens da
classe média não era bem o que ele queria da vida, virou assassino de aluguel.
Ficou alguns anos atuando no nobre ofício de livrar o mundo de uns e outros,
entrando e saindo de cadeias, fugindo e sendo pego, matando e voltando, até
matar de forma brutal a pessoa errada, uma pessoa que importava para a
sociedade, um político.
Era uma noite chuvosa de
quinta-feira. Henry estava nu, na frente do espelho grande do quarto. Com uma
mão ele carregava o copo de whisky. Com a outra, ele apontava para seu reflexo.
Com a boca, desferia ofensas das mais vis e cruéis. Soltava rajadas de ódio e
culpa naquele estranho que aparecia do outro lado da superfície prateada. Até
que telefone tocou, rompendo o transe daquele ritual macabro de
autodepreciação.
— Alô? — Iniciou a chamada Henry,
concentrando-se para disfarçar a embriaguez.
— Ô, Henry, aqui quem tá falando
é o Gaspar. Tudo bom?
Gaspar era um delegado conhecido
de Henry. Foi ele quem sugeriu o uso de um psicólogo para tentar extrair a
confissão de Dario uns quase dois anos antes. Na ocasião, após uma pesquisa
rápida na internet, achou o nome e o telefone de Henry. Ligou para o psicólogo
e desde então os dois foram de estranhos a conhecidos e depois passaram até a
partilhar de uma espécie de vínculo. Não era bem uma amizade, mas havia um
respeito mútuo, um pouco de preocupação e até admiração entre eles.
— Oi, Gaspar, tudo bem, sim, mas
você me pegou num momento meio ruim, é que...
— Então, Henry, não vou tomar
muito teu tempo, não, fica tranquilo. — Cortou Gaspar de forma ligeira. Após a
condenação de Dario, Henry nunca mais foi o mesmo, e o delegado sabia que
qualquer assunto a ser tratado com o psicólogo precisava ser breve, senão
perigava entrar num ciclo de desculpas e terminar com o fim da ligação. — É que
a gente tá com um caso aqui, e eu queria que você viesse na delegacia pra dar
uma olhada... É sem compromisso.
— Não sei, não, Gaspar...
— Só dá uma passada aqui quando
você puder. Você pode amanhã?
— Posso, mas...
— Então tá combinado, passa aqui
amanhã na hora do almoço. Tem um restaurante novo que abriu aqui perto, a gente
come lá e bate um papo. — Cortou novamente Gaspar já em tom de encerramento da
conversa. — Até amanhã então, bom descanso.
Gaspar então findou a conversa
sem esperar a resposta do outro lado. Ele sabia lidar com as pessoas, e os
meses de convivência com Henry durante o caso do garçom o ensinaram que o
psicólogo não conseguia deixar as pessoas na mão, ele precisava dizer
abertamente que não podia e explicar de forma clara seus motivos. Não dar a
Henry a chance de falar era a melhor chance de fazê-lo pegar o caso.
Na manhã seguinte, pouco antes do
sol estar a pino, lá estava Henry entrando na delegacia ostentando enormes
bolsões abaixo dos olhos.
— Henry! Você veio! — Exclamou
Gaspar já se erguendo da cadeira com um envelope pardo debaixo do braço e
andando na direção do psicólogo.
— Vim. Vim, sim.
— E essas olheiras aí? Não tá
dormindo muito bem, né? Eu te entendo, mas você sabe qual é o segredo? Desligar
a TV. Naquela porcaria só passa merda. É só político ladrão filho da puta,
morte, violência, tudo de ruim. Hoje em dia eu só ligo pra ver meu Mengão
jogar.
— Meu problema não é a TV, não,
Gaspar. Aliás, nem TV eu tenho em casa. Meu problema é você ter me usado pra
condenar um inocente.
— Pera lá, Henry. Eu não condenei
ninguém, eu sou delegado. Você tá confundindo as coisas. Vem. Vamos almoçar. Lá
no restaurante, a gente conversa melhor, você come... Me disseram que a comida
de lá é maravilhosa. Você come e fica por minha conta, certo? Em seguida a
gente conversa. — Respondeu Gaspar mudando rapidamente o rumo da conversa e já
arrastando Henry pelo braço porta à fora da delegacia.
No restaurante, Henry fez questão
de pedir o prato mais caro. Viu naquele ato infantil uma certa justiça poética.
Gaspar apenas sorriu de forma gentil e em nada se opôs. Após garfadas e
conversas veniais, enfim ambos os pratos estavam vazios. Foi nesse momento que
o semblante de Gaspar mudou, exibindo tons e rugas de seriedade.
O delegado então pegou o envelope
pardo, colocou-o em cima da mesa e o arrastou na direção de Henry.
— Aqui. Vê se você reconhece o
sujeito dessas fotos.
Henry abriu o envelope e retirou
as fotos em meio a vários outros papeis com anotações diversas. Ao olhar as
fotos, deparou-se com imagens que quase o fizeram devolver ao prato a comida de
preço salgado. Seu primeiro ímpeto foi virar as fotos para segurar a ânsia que
insistia em subir pela garganta. Depois, num segundo momento, já recomposto,
tornou a vislumbrar as imagens grosseiras. Nas fotos, um homem de pescoço e
pênis dilacerados, parecia ter sido atacado por um bicho, talvez até um leão.
— Gaspar, você me traz pra comer
e depois me mostra essa porra que quase me fez vomitar. Que merda é essa? Esse
é seu jeito de dizer que tá precisando de umas consultas?
— Você não tá reconhecendo? Esse
aí é o Eusébio Ciqueira.
Gaspar falou em tom de revelação,
porém foi recebido pelo silêncio de Henry.
— Porra, você não sabe quem é o
Eusébio Ciqueira?! — Insistiu Gaspar.
— Não. — Respondeu Henry em tom
seco.
— Ele é senador, caralho. Quer
dizer, era senador.
— Tá, entendi, um figurão
importante, mas onde eu entro nessa história?
— A gente pegou o cara que fez
essa bagunça aí. Já é condenação certa, não tem como ele escapar. Advogado
nenhum vai conseguir livrar a cara desse trouxa.
— Que ótimo, Gaspar. Fico feliz
em saber que você consegue condenações sem minha ajuda. Agora, se me der
licença...
Henry já ia se levantando, mas
foi impedido por Gaspar, que rapidamente se esticou do outro lado da mesa e
segurou o pulso do psicólogo.
— Peraí, rapaz. Não terminei
ainda. Senta aí. Te paguei o almoço, o mínimo que tu poderia fazer agora é me
ouvir. Não vai ser otário, né?
— Tá bom, Gaspar, continua. —
Disse Henry em tom impaciente sentando-se de volta à mesa.
— O problema é o seguinte, meus
superiores estão suspeitando de que tem coisa maior por trás desse assassinato.
Querem saber quem foi que mandou matar o senador.
— E você quer que eu descubra?
— Isso! Mas olha, não é por
preguiça que eu te chamei, não. A gente tentou. A gente investigou muito, a
gente questionou o criminoso muitas vezes. Só que não tem nada. A gente não
descobriu nada, e o sujeito se recusa a cooperar. Então pensei: por que não
chamar meu psicólogo favorito que consegue entrar na mente dos criminosos?
— Não é assim que funciona,
Gaspar. — Disse Henry em tom cansado levando o indicador e o polegar à ponte do
nariz e respirando fundo. — Eu não sei se quero me envolver nessa confusão,
não.
— Olha só, não quero que pense
que isso aqui foi uma armadilha, beleza? Eu te disse ontem no telefone que era
sem compromisso, não disse? Então faz o seguinte, pega esse envelope aí, leva
pra tua casa. Tem mais detalhes do caso aí. Pega, leva, lê com calma.
Segunda-feira tu me dá uma resposta, pode ser?
— Não prometo nada, Gaspar, mas
ok.
Ao longo do final de semana que
sucedeu o encontro com Gaspar, Henry remoeu cada linha das folhas do caso. Viu
as fotos exaustivamente até não se sentir nem um pouco mais impactado pela
imagem do corpo mutilado. Decorou cada vírgula da triste história de Chiquinho
Leão e por fim decidiu pegar o caso. Não porque achava que conseguiria arrancar
outra confissão, mas sim por ver em Francisco uma criança vitimada por
situações que fugiam de seu controle. Henry olhava para a foto de Chiquinho e
via alguém implorando desesperadamente por ajuda, ajuda essa que somente Henry
podia dar, ou assim o psicólogo imaginava.
As primeira sessões foram as mais
difíceis. Henry insistiu muito para poder atender Chiquinho no consultório como
fora com Dario, mas teve todos os pedidos negados. Afirmavam sempre que
Chiquinho era perigoso demais. As sessões precisavam ocorrer na sala de
visitas, sempre com Chiquinho algemado, sempre com um guarda presente. Após 6
ou 7 sessões sem progresso, Henry conseguiu pelo menos fazer o guarda ficar do
lado de fora da sala. Só então Chiquinho começou a se soltar.
— Francisco, essa já deve ser a nossa
décima sessão, mas até agora você não falou nada. Você responde a maioria das
perguntas acenando com a cabeça ou de forma extremamente sucinta. Eu quero
ajudar você, mas preciso que você também me ajude.
— É Chiquinho, dotô. Meu nome é
Chiquinho Leão, mas pode chamar só de Chiquinho.
— Ah, sim, perdão. Então,
Chiquinho. O que você acha que eu poderia fazer para você ficar mais à vontade.
— Ah, dotô, tá tudo em casa. Eu
só num sou de conversa mesmo.
— Entendi... mas não tem nenhum
assunto que você queira conversar? — De repente, Henry lembrou de Gaspar
falando que gostava de ver os jogos do Flamengo e imaginou que essa seria uma
boa forma de quebrar o gelo. — Você torce para qual clube?
— Clube? De futebol? Eu num vejo
essas coisa, não, dotô. Passei tempo demais da vida na prisão, e na prisão num
deixam a gente vê TV direito.
Henry já tinha lido a ficha
criminal de Chiquinho e sabia do tempo que ele passara encarcerado, mas viu no
fingimento de ignorância uma boa chance de se aproximar do detento.
— Passou muito tempo na prisão?
Por quê?
— Ué, dotô, porque os homi me
pegaram. — Respondeu Chiquinho em meio a risos contidos. — Se eles num me pega,
eu tava livre.
Henry abriu um ligeiro e tímido
sorriso diante do esboço de piada de Chiquinho. Nessa breve interação, Henry,
psicólogo formado e experiente, já pôde começar a vislumbrar naquele homem uma
inteligência que passaria despercebida por muitos por conta do vocabulário
limitado.
Continua...
Raphael Henrique Silva Quintão
18 de setembro de 2020