terça-feira, 14 de março de 2023

Oceano

 

 Cedo ou tarde na vida, precisamos desbravar o mar do luto. E não importa quantas horas temos atrás do timão, nesse mar escuro e profundo, somos todos sempre marinheiros de primeira viagem.

 E, como acontece com todo marinheiro de primeira viagem, é normal se perder e ficar à deriva. É normal olhar para o céu em busca das estrelas e não ver nada além de nuvens carregadas. É normal não saber se içamos as velas ou soltamos a âncora durante as tempestades.

 Mas, se você se encontra nesse mar agora, saiba que, embora ele pareça infindo, em algum lugar, em algum momento, você encontrará um farol que mostrará a rota de volta para a terra firme.

 E um dia, talvez, esse mar de ondas tão revoltas se torne uma mera lembrança na longa caminhada da vida.

 

Raphael Quintão, 16/03/23

terça-feira, 11 de maio de 2021

Miraculina

 

Caminhamos lua afora e pela superfície dos sóis,
Minha pele derreteu no teu calor e ali eu soube,
Não voltaríamos vivos e nada restaria de nós,
Mas nas formas do medo eu não coube.

Então passeamos por teus mundos e constelações,
Só que, apesar dos deslumbres dos teus sonhos,
Vi que tinha muito de mim nessas canções,
E nada de você, nada de nós, nada do que fomos.

Em silêncio moribundo eu retrocedi,
E eu sei que um novo eu nasceu,
E eu sei que você também sofreu,
E sei que, embora tudo, continuamos ali.

Mas essa nova história não tinha nada do que fomos,
Olhando em teus olhos, eu me perguntava: aonde vamos?
Pouco a pouco o encanto deu lugar a um clichê enredo.
E todo belo momento deixou em mim o gris e o azedo.

 

Raphael Henrique Silva Quintão

10 de maio de 2021

domingo, 20 de setembro de 2020

Leão (Parte 3 - Final)

 Leão (Parte 3 - Final)

No meio acadêmico, a forma com que Henry conduzira o caso de Dario era fonte de muitos debates. Uns diziam que o psicólogo não pode conduzir o paciente daquela forma. Outros diziam que, tratando-se de uma investigação, guiar o criminoso para um desfecho é mais importante do que tratar as causas que levaram o indivíduo ao crime. Fato é que essa abordagem funcionara para Henry antes e parecia estar funcionando novamente agora.

Até que chegou enfim o dia da sessão derradeira. Naquele dia Henry entrou no presídio mais leve. Ele se sentia pressionado para conseguir um desfecho da situação, mas estava confiante de que conseguiria. Na noite anterior, dormira feito um bebê, nem chegou a precisar do whisky barato e o espelho. Ele havia se convencido de que precisava apenas encerrar o contato com Chiquinho para voltar a ficar bem. Era uma mentira, mas uma mentira contada vezes o suficiente tem o mesmo poder da verdade.

— Então, Chiquinho... Estávamos falando da festa em que você conheceu o Eusébio, mas não me recordo bem como você foi parar lá.

— Ah, dotô, esse bacana aí tinha contatos. Um dia eu recebi uma ligação de um cara que disse que trabalhava pra ele, mas num disse quem era. O cara me passou um endereço, disse que tinha ouvido falar bem de mim e que tinha um tal de Euníades querendo me contratar.

— Euníades?

— Era o Eusébio, dotô, mas só fiquei sabendo que era ele depois que os homi me pegaram mesmo. Na hora ele disse que era Euníades. Nome estranho da porra.

— Certo, e como foi lá?

— Dotô, o senhor tinha que ver o tamanho da casa do bacana. Enorme. Tinha piscina, um monte de planta. Eu nunca tinha visto coisa assim, tudo chique. Aí cheguei lá e tava tendo um churrasco, mas mandaram eu ir pela porta dos fundos. Sacanagem porque eu queria uma carninha.

— E o Euníades encontrou você?

— Sim, ele me encontrou dentro da casa, me cumprimentou e me levou pra um quarto cheio de livro bonito. Ele disse que era o escritório dele.

— E sobre o que vocês conversaram?

— Ah, ele começou a falar de futebol pra puxar assunto, mas eu nem ouvi, dotô, tava de olho mesmo é nos livro. Eu nem sei ler, dotô, mas acho livro uma coisa bonita. Eu gosto de pegar os livro na mão e ficar passando as folha, fingindo que tô lendo, sabe? Aí quem olha acha até que sou importante.

Henry não pôde evitar de sentir um pouco de pena pela vida difícil que Chiquinho tivera. Talvez, em circunstâncias mais favoráveis, Chiquinho poderia vir a ser Francisco, o escritor, mas muitas vezes a vida toma rumos que fogem da nossa escolha e o Francisco escritor era apenas um devaneio. A vida fez questão de matar todas as versões de Francisco até restar somente Chiquinho Leão, assassino frio e cruel.

— E como o Euníades reagiu a você mexer nos livros dele?

— Ele num gostou, não, dotô. Rapidinho ele parou de falar de futebol e mandou eu sentar porque a coisa era séria.

— Então ele disse o que queria?

— Sim. Ele disse que tinha um pilantra aí chantageando ele. Disse que não era nada de mais, mas que precisava dar uma lição no babaca pra ninguém tentar fazer igual. Aí ele me deu um envelope com um monte de coisa escrita, mas eu num ia passar essa vergonha de dizer que num sabia ler, né, dotô? Então só dei uma olhada nos papel, fingi que tinha lido, joguei de volta pra ele e falei que num precisava daquilo, era só me dizer o nome do caboclo e onde ele morava.

— E então?

— Aí o bacana sorriu e disse que o cara se chamava Fernando Onça. Eu comecei a rir, e o bacana ficou sem entender nada.

— Rir? Por quê?

— Porra, dotô, o cara era onça, eu sou leão. Leão é o rei da selva, dotô, ele bota a onça pra comer capim pela raiz.

— Na verdade, eu acho que eles nem existem no mesmo habitat, mas... enfim, prossiga.

— Abi... o quê?

— Habitat, é onde o animal vive, mas isso é irrelevante para a nossa conversa.

— Qual é o habitat do leão?

— Não é minha especialidade, mas eu acho que é a savana. — Já prevendo que Chiquinho não fosse saber o que é a savana, Henry se pôs a explicar da melhor maneira que podia. — É quase um deserto, mas tem uma grama alta amarelada e algumas árvores.

— Eu sei o que é savana, dotô. Eu sei tudo de leão porque é meu bicho favorito. Só não sabia o que era habitat.

— O habitat da onça é a floresta. — Disse Henry já antevendo a pergunta de Chiquinho.

— Bom, essa onça aí morava num prédio dum bairro de gente rica. Quando eu cheguei lá, vi o prédio todo bonitão e achei que ele fosse bacana também.

— Você foi atrás do Fernando Onça?

— Fui, né, me pagaram pra livrar a Terra desse coitado, eu fui fazer meu serviço.

— E a conversa com o Euníades?

— Foi só aquilo mesmo. Ele me disse onde o cara morava, e eu fui embora de lá só com o cheirinho de carne de churrasco na mente.

Essa história não fazia sentido. Chiquinho estava revelando em primeira mão detalhes que não havia revelado nem para a polícia, possivelmente até um outro homicídio, mas isso não se encaixava com a morte do senador. Por alguns instantes, a chama da esperança de provar a inocência de Chiquinho reacendeu. Empolgado, Henry decidiu abandonar o protocolo e fazer aquilo que sempre fora advertido a não fazer, pressionar e ser direto com o paciente.

— Então você não matou o Euníades?

— Claro que matei. Aquele pilantra merecia morrer mais que qualquer um nesse mundo e eu num sou homem de negar essa morte, não.

— Mas...

— Eu matei ele noutro dia, dotô. — Elucidou Chiquinho já percebendo a confusão do psicólogo.

— Ah, sim...

A confissão atingiu Henry como um balde de gelo. De repente ele foi tomado pelo mesmo sentimento dos terrivelmente apaixonados que acordam sozinhos de um belo sonho com seus amores. O amor de Henry, no caso, era o ideal inatingível de ajudar quem não pode mais ser ajudado. Chiquinho era o despertador.

— Então você chegou na casa do Fernando Onça. — Continuou Henry tentando conter o desânimo.

— Isso, dotô. Cheguei lá e fiquei surpreso. O apartamento do panaca era minúsculo, dotô. Mal cabia a cama dele.

— Você não tinha dito que era um apartamento bonito num bairro luxuoso?

— E era, dotô! Mas o cara morava num cubículo. O covil da onça era uma jaulinha de cachorro.

— E o que você fez?

— Ele num tava em casa, então olhei a geladeira dele e vi que tava vazia. Aí saí, fui na padaria, comprei pão, presunto, queijo e um litro de leite. Depois voltei pro apartamento e fiquei esperando ele aparecer.

— E quando ele apareceu?

— Deu umas meia-noite, o cara chegou no maior amasso com uma morena. Tinha que ver a cara dos dois quando me viu sentado na cama. Ele achou que era assalto, ela achou que era estupro. Dava pra ver na cara deles. Mas eu num sou homi de estuprar ninguém, dotô. Matar tá tudo bem, mas estuprar é maldade.

— E o que você fez para mostrar a ela que não queria estuprá-la?

— Mostrei o trabuco pra ela e falei: “ó, vaza daqui e num abre o bico pra ninguém. Meu negócio é com ele só. Eu decorei teu rosto”.

— E você decorou mesmo o rosto dela?

— A gente fala essas coisas de sacanagem só, dotô. Se botasse essa morena na minha frente, eu nem ia reconhecer. Não decoro nem meu almoço, imagina se vou decorar a cara de uma coitada qualquer.

— E qual foi a reação do Fernando Onça?

— Ele ficou paralisado de olho arregalado, acho que ele sabia que a hora dele tinha chegado, dotô.

— Então você matou ele?

— Não, dotô. Quando a pessoa num me fez nada, eu num mato assim, não. Tem que ter um preparo, as pessoas merece dignidade na hora da morte também.

— Como assim? O que você fez então?

— Eu perguntei se ele queria um último lanche, mas ele num falou nada. Só ficou lá paradão, suando feito um porco, nem parecia onça. Aí eu fiz um sanduíche pra ele e botei em cima da mesa junto com o copo de leite.

— E ele comeu?

— Ele disse que num queria, que tava sem fome. Aí mostrei o trabuco pra ele e mandei ele comer. Num vou deixar que ele chegue na terra dos pé junto dizendo que mandei ele sem um lanche pra viagem.

— E ele?

— Ué, ele começou a comer, né, dotô. Não tinha muito o que fazer. Nisso eu fui explicando pra ele, que também num gosto de matar ninguém sem a pessoa saber por que morreu. Falei: “ó, tu mexeu com gente errada, tá sabendo? Quis chantagear um bacana aí, mas tu se fodeu. Tinha que ser mais inteligente”. Depois eu pedi pra ele me mostrar onde tava as coisa que ele usou pra chantagear meu cliente. Ele foi e me deu um envelope.

— E depois?

— Depois que ele terminou de comer, eu passei ele, dotô. Um só bem dado no meio da testa e pronto. Ainda fui legal e perguntei onde ele queria morrer. Ele disse que queria na cama. Esperei ele deitar e pei!

— E o que tinha no envelope?

— Normalmente eu nem mexo nessas coisa, sabe, dotô? Eu só entrego pro cliente e nem me meto, mas eu tava puto que aquele maldito num me deu uma carninha. Um baita churrascão de grã-fino, e o desgraçado não me dá nem um pão de alho?! Aí eu abri o envelope...

— E o que você viu? — Insistiu Henry já imaginando que essa fosse a chave para entender o assassinado de Eusébio.

— O vermelho, dotô. O vermelho tomou tudo.

Nessa hora, surpreendentemente, os olhos de Chiquinho começaram a ser tomados por lágrimas. O que quer que ele estivesse imaginando era doloroso até para um assassino em série frio e cruel. Henry não conseguia imaginar que tipo de visão tão brutal poderia chocar Chiquinho Leão, homem que falou de tantos traumas da vida sem qualquer esboço de salgar o rosto.

As palavras seguintes de Chiquinho foram o suficiente para que tudo se encaixasse, tudo fizesse sentido.

 — Era.... Era crianças, dotô. Criancinha. Bebê. E o maldito tava lá, dotô. Isso num pode, num tá certo. E aí ficou tudo vermelho.

Era uma manhã de segunda-feira e Henry acompanhava por alto, ouvindo no computador, a repercussão do homicídio de um senador honrado e dedicado à família. A polícia tratou de acobertar bem as causas que levaram ao crime. Trataram como latrocínio e ficou por isso mesmo. A curiosidade dos superiores de Gaspar sumiu de repente. Falaram que não se pode manchar sem provas a imagem de um homem tão nobre, de família, com vida e conduta ilibadas.

Enquanto ouvia as pessoas aos prantos dizendo o tanto que Eusébio Ciqueira era um homem bom que não fizera mal algum em sua passagem pelo mundo, Henry colocava na tela do computador seu próximo voo no mundo literário. Como ele dizia aos pares, amigos e familiares: mais um caso, mais um livro.

Aqueles que vieram a ler sua obra seguinte, intitulada “Leão”, puderam vislumbrar a mente de um psicopata perigoso, frio, calculista e cruel. Nenhum dos leitores sequer imaginava o quanto Henry convenientemente deixara fora do livro, os espelhos quebrados, os copos estilhaçados e as incontáveis garrafas de whisky barato espalhadas pela casa. O abismo olhava fixamente para Henry e gostava do que via.

 

 

Raphael Henrique Silva Quintão

20 de setembro de 2020

sábado, 19 de setembro de 2020

Leão (Parte 2)

 Leão (Parte 2)

Ao longo das sessões seguintes, Chiquinho foi se soltando cada vez mais e ficando mais e mais falante, deixando Henry incrivelmente surpreso e certo de que Chiquinho sabia muito da vida e de quase todas as outras coisas. Chiquinho também parecia ter um humor sombrio, ligeiramente ácido e quase constante. Às vezes ele revelava traços de si em forma de piadas ou tiradas engraçadas. Certa vez, ao ser indagado por Henry sobre a profissão de assassino de aluguel, Chiquinho respondeu: “na verdade, dotô, eu trabalho mesmo é com comunicação, sabe? Às vezes, a gente tudo fala brasileiro, mas num se entende. Agora a violência é universal. Num tem quem num entenda o canto do meu trabuco”.

Em outra ocasião, após algumas tentativas frustradas, Henry conseguiu finalmente fazer Chiquinho falar um pouco mais sobre sua infância e adolescência.

— Como você descreveria sua relação com sua mãe, Chiquinho?

— Ah, dotô... Só tinha duas coisas que ela fazia, trabalhar e me bater, mas eu gostava dela, ela tava fazendo o que podia, e eu num era nenhum santo, num sou até hoje.

— Você sentia que esse seu afeto por ela era retribuído?

— Olha, quando eu era menorzinho eu achava que sim, viu? Achava que os socos, o cinto, a corrente e tudo mais eram a forma dela de mostrar amor.

— E o que te fez mudar de ideia?

— Foi quando ela botou aquele traste pra dentro de casa. Ela dizia que amava ele, mas não batia nele. Então comecei a duvidar.

— Nessa época você tinha quantos anos? 11?

— Isso, dotô.

Henry ficou impressionado com a capacidade de reflexão e organização dos próprios sentimentos de Chiquinho. Não era qualquer criança de 11 anos que conseguia raciocinar daquela forma.

— E como era a sua relação com seu padrasto?

— Ele era um maldito, me batia até mais que minha mãe. Batia nela também. E bebia, vivia fedendo a cachaça. Acho que o ódio que eu tomei foi tão grande que é por isso que eu nunca bebi uma gota de pinga.

— Como você se sentia quando via seu padrasto agredir sua mãe?

— No começo eu achava meio estranho, porque ele batia nela, ela ficava apavorada, chorava, gritava, e eu pensava: “ué, mas ele só tá mostrando que te ama”. Nessa época eu ainda num entendia, mas, aos poucos, eu comecei a entender o que era amor de verdade. Ela levava cerveja pra ele, fazia cafuné nele, fazia tudo que ele pedia, as coisas todas, coisas que nunca fez pra mim. Aí eu entendi, é isso então que é amor. É a gente tratar bem as pessoa, com carinho, sabe, dotô?

— Existem várias formas de amar, Chiquinho. O que fizeram com você foi errado, mas você não pode esperar que o amor seja apenas uma relação limitada de subserviência e afeto.

— Subiservi... Dotô, que palavrinha complicada. Que que é isso?

Henry se viu conversando com alguém com inteligência emocional tão elevada que, por alguns instantes, esqueceu que Chiquinho era um homem simples de palavras simples, e não um dos seus clientes de classe média alta que pagavam fortunas na consulta e podiam ser dar ao luxo de ler Nietzsche.

— Perdão, Chiquinho, subserviência quer dizer servidão. Sua mãe agia como escrava do seu padrasto. É uma forma de amor, mas não é saudável. Existem outras formas de se amar.

— Que outras formas?

— Por exemplo, o companheirismo entre amigos é uma forma de amor.

— Ah, dotô, esse negócio de amigo num dá certo, não.

— Por quê?

— Ah, dotô, quando eu era moleque e fiquei preso lá naquele centro, eu fiz um monte de amigo. — Disse Chiquinho fazendo sinal de aspas com as mãos enquanto dizia a palavra “amigo”. — Na hora do vamo vê, eles tudo fugiram, me deixaram sozinho.

— Como foi isso?

— Lá dentro tinha esse negócio de gangue, sabe? Quando eu entrei, falaram que eu tinha que escolher uma gangue, senão iam me matar. Tinha duas gangues, eu fui e escolhi uma.

— Foi nessa gangue que você fez esses amigos?

— Isso. A gente andava junto o tempo todo. Tinha que ser assim, senão a molecada da outra gangue pegava a gente na judiaria. Uma vez pegaram um moleque lá, tal de João. Bagunçaram o moleque de tudo que é jeito. Depois ele se enforcou com um lençol.

— Esse João era da sua gangue, no caso?

— Acho que era, dotô, num sei bem porque ele vivia isolado. Quem se isola vira alvo fácil, por isso a gente andava tudo junto. Então era difícil num virar amigo, né... Todo dia andando junto, comendo junto, dormindo junto.

— E como foi que você descobriu que eles não eram seus amigos de verdade?

— Teve um dia lá que o Pedrin... Pedrin era o líder da nossa gangue. Ele foi mijar e os moleque da outra gangue pegaram ele na judiaria. A gente foi ajudar, mas tinha um monte deles lá. Daí deu confusão, mas eles tavam em maior número.

— E qual foi o desfecho?

— No final a gente conseguiu soltar o Pedrin, e ele correu junto com a molecada, mas um babaca tinha me pegado no mata-leão lá e eu fiquei preso.

— E o que fizeram com você?

— Ah, eles queriam fazer maldade comigo, né? Mas eu num ia deixar, não. Eu sou magrelo, dotô, eu sei que sou. Nunca liguei muito pra isso, não, mas o povo olha e acha que pode se fazer em cima de mim. O macete é tu ser cruel, dotô, foi isso que aprendi.

— Como assim cruel?

— Tem que bater onde machuca e tem que bater pra que o infeliz nem levante mais.

Nesse momento, a mente de Henry foi tomada de assalto pelas imagens das fotos do corpo do senador dilacerado. Algumas coisas já começavam a fazer sentido, mas não do jeito que Henry queria. Provar a inocência de Chiquinho já começava a parecer um sonho inalcançável. O psicólogo tentou afastar esses pensamentos e manter o foco, mas uma pergunta ecoava em sua cabeça: “será que esse Chiquinho franzino é o mesmo homem capaz de dilacerar uma jugular feito um monstro?”.

— E foi isso que você fez com os garotos?

— Só com um, o que tava me segurando.

— O que você fez?

— Quando essas coisa acontece, o vermelho vem em mim, dotô...

— Vermelho? — Interrompeu Henry.

— É, fica tudo vermelho e eu me sinto meio sem controle. Parece que viro bicho. Eu dei um soco nas bolas dele. O moleque caiu no chão. Eu já subi nele e soquei o pescoço dele, bem no gogó, soquei até ele cuspir sangue, aí eu soquei mais. Ele tentava proteger com o queixo, mas eu puxava o queixo dele pra cima e socava mais. Depois ele começou a se tremer todo, e eu continuei socando.

Nessa hora Henry teve certeza de que sim, Chiquinho seria capaz de dilacerar uma jugular feito um monstro, mas não sem provocação. Como Chiquinho mesmo havia dito, para que ele virasse essa fera, era necessário evocar o “vermelho”. A questão agora era, o que o senador fizera para evocar o vermelho em Chiquinho?

Por mais que Henry tentasse controlar sua imaginação, não conseguiu evitar de criar em sua mente a visão de Chiquinho, ainda criança, afundando no soco a traqueia de outro jovem. A cena era gráfica, aterrorizante e... vermelha, porém Henry tinha um trabalho a fazer. Os estragos psicológicos podiam ser remediados mais tarde com whisky barato e uma rodada de autodepreciação à frente do espelho.

— E o vermelho?

— Continuou.

— O que você fez então?

— A molecada ficou toda apavorada ao redor olhando. Quando você tá numa situação dessas, dotô, num pode deixar o medo te dominar. Se o medo te domina, você perde, entendeu? A molecada ali ficou presa no medo, eu aproveitei.

— Aí você fugiu?

— Não, dotô. Eu precisava deixar um exemplo pra eles. Quando a gente é esmirrado assim, tem que provar tudo dobrado. Então, em vez de matar um, eu matei dois.

— Como foi isso?

— Peguei um zé lá que tava de boca aberta e se borrando de medo. Empurrei ele, e ele já caiu no chão todo sem jeito. Aí eu peguei o pescoço dele com as duas mãos e apertei. Ele começou a se debater, eu fui e bati a cabeça dele no chão. Aí ele parou, ficou meio tonto. E eu apertando o pescoço dele. Ele foi ficando roxo e começou a se tremer todo.

— Até ele morrer?

— Não, dotô, chegaram os adultos lá que trabalhavam no centro e me tiraram de cima do pivete. Me falaram que ele morreu depois.

— E o vermelho?

— Sumiu na hora que me tiraram de cima do moleque. Pra falar a verdade, dotô, ele num merecia aquilo, não, mas ele tava lá, e eu tinha que mostrar que ninguém vai me bagunçar. Então foi ele mesmo. Hora errada, lugar errado.

— E o que você sentiu quando tirou a vida deles?

— Muita raiva.

— Só isso?

— Não. — Respondeu Chiquinho após alguns segundos de silêncio. — Eu senti que a gente tava perto, tem uma palavra pra isso, quando você é muito chegado na pessoa, qual é?

— Intimidade?

— Isso. Eu senti intimidade com eles. Nunca falei isso pra ninguém, dotô, mas normalmente eu mato com tiro, né? Um bem dado na testa e pronto, é mais limpo e mais prático. Poupa o teu tempo e o meu, mas com a mão é diferente...

— Diferente como?

— É diferente você sentir a pessoa. Você sente o quente do corpo dela. O sangue dela entra nas tuas unhas e deixa sujo. Dá até pra sentir o coração dela parando, dotô. Pra mim, esse é um momento de muita intimidade. Você sente com as mãos os últimos segundos da pessoa na Terra.

— E você julgaria essa sensação como boa ou ruim?

— Olha, tem maluco pra tudo nesse mundo, né, dotô? Mas eu num gostei, não. Por isso hoje em dia eu uso arma. Agora, quando forem me matar, quero que seja com as mãos.

— Por quê?

— Porque acho que vou me sentir menos sozinho assim, com alguém pra sentir meus últimos momentos comigo.

— Você falou do vermelho... Seu padrasto fazia você ver vermelho?

— Ô! O tempo todo, dotô. Até o dia que ele conheceu a peixeira lá de casa, aí nunca mais.

— Como foi isso?

— O maldito chegou em casa fedendo a pinga como sempre, mas nesse dia minha mãe já tinha me dado uma surra, então eu já tava vendo tudo vermelho. Aí o pilantra foi no meu quarto e me bateu também, sem motivo nenhum, dotô. Eu tava quieto. Ele veio e deu uma bicuda na minha barriga. Cospiu na minha cara e mandou eu ficar quieto que ele queria comer minha mãe em paz.

— E depois?

— Aí ele foi pro quarto dela, e eu fiquei encolhido ouvindo os gritos. Um tempo depois a gritaria passou e ficou tudo silêncio. Aí eu fui no quarto da minha mãe olhar. Tava os dois pelados na cama. Minha mãe tava cheia de sangue, achei até que ela tava morta.

— E o que você fez?

— Fui na cozinha e peguei a maior faca que tinha lá. Depois voltei no quarto e passei a faca no pescoço dele. Ele ainda chegou a levantar e me dar um soco na cara, mas logo caiu de joelhos. Ele ficava tentando tapar o corte com a mão, mas jorrava sangue pra todo lado.

— E o vermelho?

— Foi sumindo junto da vida dele. A cada jorrada de sangue, o vermelho diminuía. Parecia que a fera tava ficando saciada.

E foi assim que Henry ficou sabendo em detalhes dos delitos mais hediondos da infância e adolescência de Chiquinho. O psicólogo ainda via muito terreno a ser explorado, mas já tinha certeza de que aquele detento não era um psicopata unidimensional sedento por sangue, mas sim um personagem complexo de múltiplas facetas e difícil compreensão.

Para Henry, o mergulho na mente de Chiquinho se equiparava a um mergulho na escuridão. Cada vez mais Henry via sua mente tomada por pensamentos sombrios e negativos. Ele lembrava de Nietzsche e se perguntava se não estaria olhando demais para o abismo. Secretamente, ele tinha medo de que o abismo olhasse de volta para ele. No fundo, o medo de Henry não era de conhecer mais de Chiquinho, mas sim de se identificar com aquele criminoso monstruoso por quem tinha estranho fascínio.

Os dias foram se passando, e as consultas se repetiam. Aos poucos, Henry conhecia mais de Chiquinho e de si próprio. A chance de ajudar Chiquinho de alguma forma também parecia mais e mais remota. Paralelamente a isso, os rituais na frente do espelho também ficavam mais frequentes e fugiam de controle. Certo dia a rotina ritualística precisou ser interrompida porque Henry, num acesso de fúria, tacou o copo de whisky contra o próprio reflexo, quebrando o espelho. Aquele ato trouxe a ele uma paz bem efêmera que logo foi substituída por desespero, sentimento que só passou após a troca do espelho quebrado e o retorno à rotina autodepreciativa. Henry não sabia, mas o abismo já olhava de volta para ele e gostava do que via.

Em certo momento, Henry por fim notou que precisava pôr um fim àquilo, que as idas ao presídio e o contato com Chiquinho estavam o consumindo e que ele não aguentaria por muito mais tempo. Ele precisava dar um basta naquela jornada macabra de conhecimento, antes que ficasse tão danificado a ponto de perder a funcionalidade.

Então Henry se programou e prometeu para si que resolveria aquele caso em mais cinco sessões. Dario precisara de doze sessões para se abrir. Com medo de condenar outro inocente, Henry prolongou a dança com Chiquinho por mais de vinte sessões. Ele não guiava seu paciente, apenas tateava no escuro na esperança de em algum momento achar a agulha do palheiro. Isso precisava de um basta. A abordagem tinha que mudar. Henry tinha que mudar.

Nas quatro sessões seguintes Henry conseguiu progredir bem mais. Chiquinho parecia um pouco desconfortável com a nova abordagem mais direta de Henry, mas não ofereceu resistência, deixou que o psicólogo o guiasse e apressasse a jornada.

Continua...


Raphael Henrique Silva Quintão

19 de setembro de 2020

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Leão (Parte 1)

 

Leão (Parte 1)

Por mais um dia Henry precisava entrar naquele lugar infernal dedicado a punir aqueles que desviavam da conduta esperada e imposta pelos livros mor da sociedade. Era assim que ele via o local. Na teoria, a função das grades era isolar e ressocializar, mas Henry, psicólogo formado com anos de carreira na área criminal, sabia que não existe ressocialização de humano tratado feito bicho. “Gente tratada como bicho, aprende a ser bicho”, dizia ele. Não que a opinião dele importasse ou que ele fizesse questão de ser ouvido. No fundo, ele já tinha desistido de mudar o mundo. Contentava-se com o salário e o sexo descompromissado, e muitas vezes pago, nos finais de semana.

Independentemente do que pensava, porém, o protagonista de nossa história precisava cumprir seu papel na narrativa. Então, após longo e exausto suspiro, o inferno ele adentrava. Lá, três coisas existiam em amplo estoque: diabos sofridos, barras de metal e gente que se dizia inocente. Ao longo dos meses que teve que visitar em frequência próxima da diária aquele covil da desesperança, Henry decorou a face de quase todos ali. Alguns rostos, inclusive, já tinham partido daquele inferno para o bíblico porque, veja bem, dizer que a vida nestes lugares é difícil seria um eufemismo homérico.

Com o tempo, Henry foi decorando involuntariamente a rotina local. Já sabia quem era, de fato, perigoso por lá, e quem era só mais uma vítima. Vez ou outra batia nele sentimento de compaixão e vontade de ajudar aqueles que estão lá por infortúnio sofrido e não causado, mas tal sentimento era feito brisa de asfalto no auge do verão, desconfortável e ligeiro. O psicólogo levava as faces de dor para casa, mas, com determinação titânica e whisky barato, conseguia afastá-las para o vazio do fundo da mente. “Foco, Henry”, repetia o coitado na frente do espelho junto de frases motivacionais baratas. Não raramente era pego de supetão, como uma bofetada na face, pela lembrança de seu professor do primeiro período da faculdade dizendo: “àqueles que entraram aqui em busca de conserto, recomendo a porta da rua. Aqui vocês vão aprender a consertar os outros, e frequentemente vão falhar”.

O motivo de Henry ter que frequentar lugar que fazia tão mal a seu estado mental se chamava Chiquinho Leão. Chiquinho era homem franzino de cabelo encaracolado bem curto e traços finos, quase femininos. Ele usava óculos fundo de garrafa e roupas largas. Quem o visse na rua jamais imaginaria se tratar de criminoso perigosíssimo, digno de segurança máxima e vigilância 24 horas. Até mesmo Henry, que fora treinado para perfilar pessoas, teve dificuldades no começo para associar Chiquinho Leão, o assassino em série, com Chiquinho Leão, o homem de ombro murcho e voz adocicada.

Alguns anos antes, Henry havia ganhado notoriedade e vendido livros aos baldes após resolver o curioso caso da morte por envenenamento de 47 pessoas numa festa. Na ocasião, Henry conseguiu uma confissão do então garçom. A mando dos donos da festa, o garçom, Dario, envenenara as bebidas. No entanto, sem ter como provar que havia sido um suicídio coletivo, o ex-garçom foi condenado pelo homicídio de todas as 47 pessoas. Henry se beneficiou da situação, aquilo alavancou sua carreira e o ajudou até a alçar voos no meio literário com o título “Conhecendo o assassino”, livro que rapidamente se tornou literatura recomendada a todos que desejavam aprender a entrar na mente de um assassino.

Já a mente de Henry entrou numa espiral de autodestruição e culpa ao descobrir a condenação do antigo paciente. No meio acadêmico, Henry era tido como gênio. Em casa, na frente do espelho, Henry se via como um idiota.

Ao receber a ligação falando do caso de Chiquinho, Henry viu uma oportunidade de se redimir. Aos seus pares, amigos e familiares, Henry dizia que era apenas mais um trabalho com a polícia, mais um caso, mais um livro. No seu âmago, Henry se agarrava desesperadamente à chance inexistente de consertar erros do passado. E foi assim, nesse misto de remorso com ganância, que os mundos de Henry e Francisco, vulgo Chiquinho Leão, colidiram-se.

Henry era filho de um americano com uma brasileira. Teve um lar estável e estudou nos melhores colégios. Alguns meses depois de completar 18 anos, Henry perdeu o pai para a leucemia. Foi uma dor horrível que Henry custou a superar, mas foi um dos dois fatores que o motivaram a cursar psicologia. Com a morte do pai, veio a queda no padrão de vida, em muito causado pelo alcoolismo da mãe — o segundo fator que o motivou a cursar psicologia. A vida de Henry tinha tudo para degringolar após a morte da figura paterna, porém o universo sorriu para ele. A mãe se recuperou do alcoolismo, Henry conseguiu se formar e se tornou um bom profissional. Após alguns poucos anos de prática, decidiu se especializar na área criminal. Tinha o sonho de ajudar inocentes a provarem a ausência de culpa... triste ironia.

 Francisco era filho de uma passadeira. Nunca conheceu o pai. Sua mãe, Ruth, sempre extremamente ocupada com botar comida na mesa de casa, não tinha tempo para dar amor e afeto ao filho. Além disso, Ruth também nem sabia muito bem o que era amor e afeto, fora criada na base do cinto e assim também criou Francisco. Aos 12, cansado de apanhar e ver a mãe apanhar do padrasto, Francisco decidiu pôr fim àquela fagulha com um breve deslizar de peixeira afiada na goela do cristão adormecido. Denunciado pela própria mãe apavorada, Francisco foi mandado para um centro de reabilitação de menores. Lá a única reabilitação que Francisco teve foi morrer e virar Chiquinho. Aos 16, depois de se envolver numa disputa interna de poder entre gangues de menores, Chiquinho matou dois com as próprias mãos, sem o auxílio de qualquer artefato, apenas falanges e tendões. Pouco tempo depois, fugiu do centro de reabilitação. Os relatos dos funcionários do local eram variados. Uns diziam que Chiquinho era um doce de pessoa, os outros meninos é que implicavam com ele. Outros diziam que Chiquinho era ardiloso e de coração ruim. Fato é que, pouco tempo depois de fugir, antes mesmo da maioridade, Chiquinho entrou para o tráfico. Foi nessa época que ele tatuou um leão no peito e passou a exigir que o chamassem de Chiquinho Leão. Depois, vendo que ajudar no torpor de jovens da classe média não era bem o que ele queria da vida, virou assassino de aluguel. Ficou alguns anos atuando no nobre ofício de livrar o mundo de uns e outros, entrando e saindo de cadeias, fugindo e sendo pego, matando e voltando, até matar de forma brutal a pessoa errada, uma pessoa que importava para a sociedade, um político.

Era uma noite chuvosa de quinta-feira. Henry estava nu, na frente do espelho grande do quarto. Com uma mão ele carregava o copo de whisky. Com a outra, ele apontava para seu reflexo. Com a boca, desferia ofensas das mais vis e cruéis. Soltava rajadas de ódio e culpa naquele estranho que aparecia do outro lado da superfície prateada. Até que telefone tocou, rompendo o transe daquele ritual macabro de autodepreciação.

— Alô? — Iniciou a chamada Henry, concentrando-se para disfarçar a embriaguez.

— Ô, Henry, aqui quem tá falando é o Gaspar. Tudo bom?

Gaspar era um delegado conhecido de Henry. Foi ele quem sugeriu o uso de um psicólogo para tentar extrair a confissão de Dario uns quase dois anos antes. Na ocasião, após uma pesquisa rápida na internet, achou o nome e o telefone de Henry. Ligou para o psicólogo e desde então os dois foram de estranhos a conhecidos e depois passaram até a partilhar de uma espécie de vínculo. Não era bem uma amizade, mas havia um respeito mútuo, um pouco de preocupação e até admiração entre eles.

— Oi, Gaspar, tudo bem, sim, mas você me pegou num momento meio ruim, é que...

— Então, Henry, não vou tomar muito teu tempo, não, fica tranquilo. — Cortou Gaspar de forma ligeira. Após a condenação de Dario, Henry nunca mais foi o mesmo, e o delegado sabia que qualquer assunto a ser tratado com o psicólogo precisava ser breve, senão perigava entrar num ciclo de desculpas e terminar com o fim da ligação. — É que a gente tá com um caso aqui, e eu queria que você viesse na delegacia pra dar uma olhada... É sem compromisso.

— Não sei, não, Gaspar...

— Só dá uma passada aqui quando você puder. Você pode amanhã?

— Posso, mas...

— Então tá combinado, passa aqui amanhã na hora do almoço. Tem um restaurante novo que abriu aqui perto, a gente come lá e bate um papo. — Cortou novamente Gaspar já em tom de encerramento da conversa. — Até amanhã então, bom descanso.

Gaspar então findou a conversa sem esperar a resposta do outro lado. Ele sabia lidar com as pessoas, e os meses de convivência com Henry durante o caso do garçom o ensinaram que o psicólogo não conseguia deixar as pessoas na mão, ele precisava dizer abertamente que não podia e explicar de forma clara seus motivos. Não dar a Henry a chance de falar era a melhor chance de fazê-lo pegar o caso.

Na manhã seguinte, pouco antes do sol estar a pino, lá estava Henry entrando na delegacia ostentando enormes bolsões abaixo dos olhos.

— Henry! Você veio! — Exclamou Gaspar já se erguendo da cadeira com um envelope pardo debaixo do braço e andando na direção do psicólogo.

— Vim. Vim, sim.

— E essas olheiras aí? Não tá dormindo muito bem, né? Eu te entendo, mas você sabe qual é o segredo? Desligar a TV. Naquela porcaria só passa merda. É só político ladrão filho da puta, morte, violência, tudo de ruim. Hoje em dia eu só ligo pra ver meu Mengão jogar.

— Meu problema não é a TV, não, Gaspar. Aliás, nem TV eu tenho em casa. Meu problema é você ter me usado pra condenar um inocente.

— Pera lá, Henry. Eu não condenei ninguém, eu sou delegado. Você tá confundindo as coisas. Vem. Vamos almoçar. Lá no restaurante, a gente conversa melhor, você come... Me disseram que a comida de lá é maravilhosa. Você come e fica por minha conta, certo? Em seguida a gente conversa. — Respondeu Gaspar mudando rapidamente o rumo da conversa e já arrastando Henry pelo braço porta à fora da delegacia.

No restaurante, Henry fez questão de pedir o prato mais caro. Viu naquele ato infantil uma certa justiça poética. Gaspar apenas sorriu de forma gentil e em nada se opôs. Após garfadas e conversas veniais, enfim ambos os pratos estavam vazios. Foi nesse momento que o semblante de Gaspar mudou, exibindo tons e rugas de seriedade.

O delegado então pegou o envelope pardo, colocou-o em cima da mesa e o arrastou na direção de Henry.

— Aqui. Vê se você reconhece o sujeito dessas fotos.

Henry abriu o envelope e retirou as fotos em meio a vários outros papeis com anotações diversas. Ao olhar as fotos, deparou-se com imagens que quase o fizeram devolver ao prato a comida de preço salgado. Seu primeiro ímpeto foi virar as fotos para segurar a ânsia que insistia em subir pela garganta. Depois, num segundo momento, já recomposto, tornou a vislumbrar as imagens grosseiras. Nas fotos, um homem de pescoço e pênis dilacerados, parecia ter sido atacado por um bicho, talvez até um leão.

— Gaspar, você me traz pra comer e depois me mostra essa porra que quase me fez vomitar. Que merda é essa? Esse é seu jeito de dizer que tá precisando de umas consultas?

— Você não tá reconhecendo? Esse aí é o Eusébio Ciqueira.

Gaspar falou em tom de revelação, porém foi recebido pelo silêncio de Henry.

— Porra, você não sabe quem é o Eusébio Ciqueira?! — Insistiu Gaspar.

— Não. — Respondeu Henry em tom seco.

— Ele é senador, caralho. Quer dizer, era senador.

— Tá, entendi, um figurão importante, mas onde eu entro nessa história?

— A gente pegou o cara que fez essa bagunça aí. Já é condenação certa, não tem como ele escapar. Advogado nenhum vai conseguir livrar a cara desse trouxa.

— Que ótimo, Gaspar. Fico feliz em saber que você consegue condenações sem minha ajuda. Agora, se me der licença...

Henry já ia se levantando, mas foi impedido por Gaspar, que rapidamente se esticou do outro lado da mesa e segurou o pulso do psicólogo.

— Peraí, rapaz. Não terminei ainda. Senta aí. Te paguei o almoço, o mínimo que tu poderia fazer agora é me ouvir. Não vai ser otário, né?

— Tá bom, Gaspar, continua. — Disse Henry em tom impaciente sentando-se de volta à mesa.

— O problema é o seguinte, meus superiores estão suspeitando de que tem coisa maior por trás desse assassinato. Querem saber quem foi que mandou matar o senador.

— E você quer que eu descubra?

— Isso! Mas olha, não é por preguiça que eu te chamei, não. A gente tentou. A gente investigou muito, a gente questionou o criminoso muitas vezes. Só que não tem nada. A gente não descobriu nada, e o sujeito se recusa a cooperar. Então pensei: por que não chamar meu psicólogo favorito que consegue entrar na mente dos criminosos?

— Não é assim que funciona, Gaspar. — Disse Henry em tom cansado levando o indicador e o polegar à ponte do nariz e respirando fundo. — Eu não sei se quero me envolver nessa confusão, não.

— Olha só, não quero que pense que isso aqui foi uma armadilha, beleza? Eu te disse ontem no telefone que era sem compromisso, não disse? Então faz o seguinte, pega esse envelope aí, leva pra tua casa. Tem mais detalhes do caso aí. Pega, leva, lê com calma. Segunda-feira tu me dá uma resposta, pode ser?

— Não prometo nada, Gaspar, mas ok.

Ao longo do final de semana que sucedeu o encontro com Gaspar, Henry remoeu cada linha das folhas do caso. Viu as fotos exaustivamente até não se sentir nem um pouco mais impactado pela imagem do corpo mutilado. Decorou cada vírgula da triste história de Chiquinho Leão e por fim decidiu pegar o caso. Não porque achava que conseguiria arrancar outra confissão, mas sim por ver em Francisco uma criança vitimada por situações que fugiam de seu controle. Henry olhava para a foto de Chiquinho e via alguém implorando desesperadamente por ajuda, ajuda essa que somente Henry podia dar, ou assim o psicólogo imaginava.

As primeira sessões foram as mais difíceis. Henry insistiu muito para poder atender Chiquinho no consultório como fora com Dario, mas teve todos os pedidos negados. Afirmavam sempre que Chiquinho era perigoso demais. As sessões precisavam ocorrer na sala de visitas, sempre com Chiquinho algemado, sempre com um guarda presente. Após 6 ou 7 sessões sem progresso, Henry conseguiu pelo menos fazer o guarda ficar do lado de fora da sala. Só então Chiquinho começou a se soltar.

— Francisco, essa já deve ser a nossa décima sessão, mas até agora você não falou nada. Você responde a maioria das perguntas acenando com a cabeça ou de forma extremamente sucinta. Eu quero ajudar você, mas preciso que você também me ajude.

— É Chiquinho, dotô. Meu nome é Chiquinho Leão, mas pode chamar só de Chiquinho.

— Ah, sim, perdão. Então, Chiquinho. O que você acha que eu poderia fazer para você ficar mais à vontade.

— Ah, dotô, tá tudo em casa. Eu só num sou de conversa mesmo.

— Entendi... mas não tem nenhum assunto que você queira conversar? — De repente, Henry lembrou de Gaspar falando que gostava de ver os jogos do Flamengo e imaginou que essa seria uma boa forma de quebrar o gelo. — Você torce para qual clube?

— Clube? De futebol? Eu num vejo essas coisa, não, dotô. Passei tempo demais da vida na prisão, e na prisão num deixam a gente vê TV direito.

Henry já tinha lido a ficha criminal de Chiquinho e sabia do tempo que ele passara encarcerado, mas viu no fingimento de ignorância uma boa chance de se aproximar do detento.

— Passou muito tempo na prisão? Por quê?

— Ué, dotô, porque os homi me pegaram. — Respondeu Chiquinho em meio a risos contidos. — Se eles num me pega, eu tava livre.

Henry abriu um ligeiro e tímido sorriso diante do esboço de piada de Chiquinho. Nessa breve interação, Henry, psicólogo formado e experiente, já pôde começar a vislumbrar naquele homem uma inteligência que passaria despercebida por muitos por conta do vocabulário limitado.

Continua...


Raphael Henrique Silva Quintão

18 de setembro de 2020

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Pai

 

Pai

    Hoje, nesta manhã fria, sento-me para enfim escrever. Não sei bem por onde começar porque perdi a prática. Meu pai sempre disse que escrever é um músculo, “se você não o usa, ele atrofia”, dizia ele. E eu deixei meu músculo da escrita atrofiar.

Meu pai dizia que, se você não souber o que escrever, sente-se e escreva sobre isso, sobre sua incapacidade de escrever. Certa vez li num livro de Rubem Fonseca que o bom escritor é aquele que escreve até mesmo sem inspiração. Meu pai era um bom escritor, já eu, na melhor das hipóteses, medíocre.

Acho que, no fundo, esse conto acabará sendo sobre isso, a minha incapacidade de escrever sem inspiração. Inspiração essa que não me visita mais desde que meu pai se foi. Vai ver a inspiração foi com ele, vai ver ele era minha inspiração... vai ver esse conto é sobre ele.

Lembro de meu pai sentado na sacada da nossa casa em Saquarema vendo o pôr do sol, sempre com um livro à mão. Certa vez ele virou para mim e disse: “menina, quando você for escrever, não queira ser dona da obra, porque as melhores obras têm vida própria. Deixe que as palavras te guiem, e o conto acha o rumo sozinho”. Ele acreditava que éramos apenas instrumentos da escrita, e nunca donos daquilo que escrevíamos.

Quando adolescente, lembro que arrumei um namoradinho que logo me dispensou. Fiquei por dias inconsolável e trancada no quarto. Até que meu pai abriu a porta e disse: “menina, chega de choro, bota essas lágrimas no papel”, e largou uma máquina de datilografar na mesa, ironicamente, ao lado do meu computador. Em seguida, sem sequer demonstrar qualquer esboço de dó no rosto, afirmou: “o sofrimento afina nossa sintonia”.

Eu demorei anos para entender o que ele quis dizer com o sofrimento afinar nossa sintonia, até que tive que passar pelo meu divórcio, um dos períodos mais turbulentos da minha vida. E foi nessa época que escrevi meus melhores contos. Como diz o ditado: “ostra feliz não produz pérola”, mas, como meu pai bem disse naqueles dias, não se pode querer sofrer para escrever, a escrita é para aliviar a alma.

Foi ainda no luto pela minha mãe que meu pai escreveu seu livro mais bonito, sombrio e melancólico. Depois disso, nunca mais escreveu uma linha, dizia que não conseguia escrever sem cor. Era assim, só por metáforas, que ele falava do que sentia. Ele podia dizer que tinha perdido a vontade de viver, mas preferia dizer que não escrevia sem cor. Poético e trágico.

Minha mãe se foi quando eu ainda era muito nova, então meu pai virou o alvo principal da minha curiosidade acerca da figura materna. Ele se esquivava o quanto podia, falar da mulher da vida dele causava dor, mas eu era persistente e, como toda criança, pouco empática.

Lembro de certo diálogo que correu assim:

— Fala, menina, o que quer saber afinal?

— Tudo.

— Tudo, né? Não quer ser mais específica? Tudo é muito genérico.

— Não. Quero tudo.

— Então tá bom. — respondeu ele franzindo o cenho e coçando a cabeça. — A tua mãe era gelo, eu era fogo. Ela era solidão, e eu era tumulto. Eu era todas as cores, ela era o cinza. Entendeu?

Respondi balançando a cabeça em negativa. Então ele deu um longo suspiro e olhou para mim com uma expressão derrotada.

— Você, menina, nunca vai entender o que eu estou falando porque você tem muito da sua mãe e nada de mim. Eu era um incêndio. No começo o calor é gostoso, mas depois a gente se queima, e eu vivia queimado, eu queimava os outros, eu sofria e fazia sofrer. Nada, nunca, era o suficiente.

— E aí você conheceu minha mãe.

— E aí eu conheci sua mãe.

— Ela apagou o incêndio?

— Não. Ela não se queimou. Ela era à prova de chamas.

— Como assim?

— Quando a gente é assim, intenso, a gente machuca os outros, e parece que é de propósito, mas não é, e dói muito na gente também. Sua mãe sabia me viver sem se machucar. Aos poucos ela foi moldando minha chama, aos poucos ela foi estabilizando meus altos, amenizando meus baixos. No fim, eu continuei intenso, mas era o intenso à maneira dela.

— E isso era bom?

— Era bom para ela.

— E para você?

— Para mim, não. Não, porque estou aqui à maneira dela, mas ela não está aqui. Ela me viveu, agora vivo sem ela.

E assim terminou a conversa.

Depois da minha mãe, nunca mais vi meu pai com ninguém, exceto a dona morte. Com esta ele dançou e flertou por meses nas idas e vindas do alcoolismo. Até que a dona se cansou e o levou de vez. Hepatite fulminante causada por cirrose, disseram os médicos.

Meu pai era mestre na arte do sofrer calado. Do alcoolismo só fui saber já nos últimos meses da vida dele, e aí tudo fez sentido, as metáforas, a depressão, a falta de cor, as garrafas...

Meu pai estava certo, chego ao final desse conto que se escreveu sozinho. A ironia é ele ter me mostrado que meu pai estava errado. Ele dizia que nada tinha dele em mim, mas acho que, na verdade, tenho muito dele aqui. As metáforas, a falta de cor, as garrafas... Parece que estou com a sintonia afinada.

 

 

Raphael Henrique Silva Quintão

11/09/2020

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Carta para nebula



Carta para nebula



A primeira vez que eu te vi, fiquei completamente dominada, incapaz de esboçar qualquer reação. Dias e noites se confundiam no instante de um olhar. Quando nossos olhares se cruzaram, senti constelações inteiras surgirem dentro de mim. Uma estrela nascia e explodia em chamas a cada batida do meu coração.

Toda luz deriva dela.

Você proferiu nossa primeira palavra, mas o primeiro passo foi meu. No instante que eu entrei na sala, já pude sentir seu campo gravitacional e orbitei ao seu redor, incapaz de oferecer qualquer resistência.

Ela não era desse mundo.

Quando dançávamos, eu podia sentir que gerávamos o universo. Galáxias nasciam e se expandiam. Buracos negros engoliam galáxias, devoravam toda a existência. A cada novo passo a acorde, uma nova estrela e um novo planeta.

No momento em que seus braços me envolveram, eu soube que seria para sempre sua. Todo o universo era seu por direito. Minha alfa e minha ômega, meu começo e meu fim, minha primeira e minha derradeira.

Ela criava vida com seus sussurros.

Então se você e só você me completava, por que era errado?

Se eu podia sentir o infinito em seus braços, por que teve um fim?

Uma garrafa, um punho, uma faca, uma arma. Nossas feridas são mundanas, nós éramos uma supernova.

Você não era desse mundo. Por isso te tiraram de mim?

O universo congelará, contrairá e morrerá, mas você não. Você é a explosão cósmica, a origem de tudo. Você para sempre ascenderá.

Nós somos uma supernova.




Raphael H. Silva Quintão            21/07/2016